A noite de Natal
A noite de Natal / Sophia de Mello Breyner Andresen. Ilustrações Jorge Nesbitt.
A noite de Natal
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada a 10 de dezembro de 1948 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, fixa um ideal comum de direitos fundamentais: saúde/ segurança, educação/ trabalho e liberdade de expressão/ opinião.
Estabelece que todos os seres humanos têm um valor intrínseco, a dignidade, que deve ser reconhecido pela sociedade, para que cada um - independentemente de seus atos, origem ou caraterísticas - tenha a oportunidade de construir uma vida com significado. Este valor está consagrado no primeiro artigo: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”.
Em 2015 a Assembleia Geral das Nações Unidas estabelece 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) interdependentes que têm na raiz os direitos humanos, uma vez que o progresso dos ODS impulsiona o avanço de todos os direitos humanos e os ODS progridem cada vez que os direitos humanos avançam.
A globalização, as inovações digitais e tecnológicas e a fragmentação do poder dificultam a adoção de medidas que permitam às instituições democráticas a adaptação eficaz aos problemas sociais e ambientais, de natureza imprevisível e exponencial. A crise pandémica, provocada pela doença Covid- 19, que em 2020 assolou o mundo, acentuou maciçamente a discriminação e desigualdades.
Assim, é fundamental que na reconstrução do mundo pós-Covid 19 coloquemos os direitos humanos no centro. A saúde e a segurança resultam de uma efetiva e justa distribuição de direitos por todos.
Neste contexto a ONU propõe como tema para o Dia dos Direitos Humanos, Recuperação – Defender os Direitos Humanos e desafia cada cidadão a apresentar exemplos, práticos e inspiradores, que possam contribuir para uma melhor recuperação e promoção dos direitos de todos e construção de uma sociedade mais resiliente e justa.
Na página oficial deste Dia, a ONU sublinha o contributo das mulheres que deram forma à Declaração Universal dos Direitos Humanos, disponibiliza uma edição ilustrada da Declaração Universal dos Direitos Humanos e um conjunto de materiais que podem ser trabalhados com as crianças e jovens e a comunidade.
Recordando a humanista Eleanor Roosevelt, que presidiu ao comitê que aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, “Afinal, onde começam os direitos humanos universais? Em lugares pequenos, perto de casa - tão perto e tão pequenos que não podem ser vistos em nenhum mapa do mundo.”
Lucille Bridges,mãe do ícone
da Anti-Segregação Ruby Bridges, morreu em novembro, aos
86 anos de idade.
Nasceu no Mississipi e, tal como a maioria
das crianças negras naquele tempo, não chegou a terminar a escola primária. Foi
mãe em 1954, o ano do caso Brown
vs. Board of Education, no qual o Supremo Tribunal considerou
ilegal a segregação nas escolas norte-americanas. O Louisiana foi um dos
estados que prolongou a discriminação até à publicação de uma lei federal, em
1960. Mesmo assim, o distrito escolar onde os Bridges moravam exigia que
os alunos negros fizessem um exame para determinar se tinham condições para
estudar com os colegas brancos. Nesse ano, Ruby foi uma dos 165 alunos que
fizeram o exame, foi apenas uma das seis crianças aprovadas e foi a única a
decidir frequentar a escola William Frantz Elementary, tradicionalmente uma
escola branca.
O pai, Abon, estava reticente, foi a mãe que insistiu que ela
deveria ir. "Queria que os meus filhos tivessem melhores oportunidades do
que nós, queria que eles fossem para a escola e aprendessem", explicou
numa entrevista posterior. Antes daquele primeiro dia de aulas, o diretor da
escola disse-lhes, a ela e ao marido, que era melhor rezarem porque as coisas
iriam ficar feias. E ficaram.
Naquele dia, Ruby saiu de casa com roupa e sapatos novos,
oferecidos por um apoiante dos direitos civis, que a família não teria dinheiro
para comprar, acompanhada pela mãe. Enquanto faziam o seu caminho a pé para a
escola, uma multidão de brancos furiosos gritava "Two, four, six, eight,
we don't want to integrate" e atirava-lhes tomates, ovos e garrafas. A
casa da família esteve sob escolta policial durante todo o ano lectivo, várias
famílias tiraram os seus filhos daquela escola, apenas uma professora aceitou
dar aulas a Ruby - e por isso durante um ano ela teve aulas sozinha. Toda a
família sofreu pressões, Abon perdeu o emprego e os pais acabariam por se
separar.
Mas também houve muita gente a apoiar a família e, gradualmente,
as escolas do Sul acabaram por aceitar o fim da segregação.
Ruby estudou sempre em escolas públicas não segregadas, terminou
o liceu e é, desde então, uma activista dos direitos civis.
Este momento aconteceu
há precisamente 60 anos, a 14 de novembro de 1960. A mãe de Ruby não aparece em
muitas das fotografias daquele dia que se tornaram famosas. Mas, como sempre,
as mães até podem ficar uns passos para trás e prescindir do protagonismo, mas
estão lá.
Lucille morreu no passado dia 10 de novembro, com 86 anos.
........e porque o Dia Internacional dos Direitos Humanos está a aproximar-se, consideramos pertinente a partilha do seguinte artigo publicado no DN, na sua edição de 14 de novembro.
Portugal na génese do Direito Internacional dos Direitos
Humanos
Foram recentemente publicados três volumes de manuscritos latinos inéditos, traduzidos, comentados e anotados*, correspondentes às lições de vários professores das universidades de Coimbra e Évora dos séculos XVI e XVII, que assinalam a contribuição de Portugal para o longo percurso de afirmação da universalidade dos direitos humanos e para a construção de princípios atinentes à convivência pacífica entre os povos do mundo.
Tal como sucedeu com a Escola de Salamanca, fundada no
século XVI por Francisco de Vitoria, estava em causa a afirmação de um
princípio intrínseco de sociabilidade entre os homens, prolongando-se num
princípio intrínseco de sociabilidade entre as comunidades humanas e Estados
emergentes, independentemente de coordenadas geográficas ou culturais, porque a
paz era, para estes professores, a caracterização da vida e não simplesmente o
resultado do medo da guerra ou uma estratégia bélica.
Fundando-se na unidade substancial do género humano e na
igualdade natural entre os homens, criados livres e iguais, desde cedo
afirmaram a supremacia da razão da humanidade sobre a razão de estado, da
solidariedade (caridade) sobre a soberania e da consciência sobre a vontade. Daí
a construção de um direito das gentes ou dos povos que não se circunscrevia à
esfera restrita do interesse particular dos Estados, revelando uma ampla
conceção da personalidade jurídica internacional, que abarcava também os
indivíduos e a humanidade como um todo, em textos que hoje ainda reclamam
vigência
Os seres humanos não eram objeto de direitos que o Príncipe
outorgue ou conceda, mas sujeitos de direitos que deles emanavam diretamente,
traduzindo-se num progressivo reconhecimento, através da experiência
compartilhada dos povos do mundo, de normas e princípios de que não poderíamos
prescindir pelo facto de todos sermos humanos.
Esta ampla conceção da personalidade jurídica internacional,
que obrigava a submeter os diferendos ao juízo da reta razão, assinalava a
génese da ideia de uma autoridade universal, que já não residia no Papa ou no
imperador, mas num conjunto de princípios jurídicos que a todos vinculavam,
dando corpo ao direito das gentes.
Transparece, por isso, nos textos agora publicados, a ideia
de humanidade como princípio regulador da comunidade internacional, erguendo-se
sobre a noção de dignidade de todos os seres humanos, portadores de direitos
naturais, e entendia-se que a natureza, que qualificava o direito, era
referencial de universalidade, racionalidade e inteligibilidade.A motivação
mais imediata destas lições de António de São Domingos, Fernando Pérez, Pedro
Simões, Cosme de Magalhães, Martín de Ledesma, Luis de Molina, M. Azpilcueta e
F. Suárez foi em boa medida a expansão marítima e territorial de Portugal e
Espanha e a consequente construção dos seus impérios. O encontro entre povos, a
constatação da pluralidade radical das culturas e das religiões, terras e
oceanos, as guerras, as conquistas, os roubos e as rapinas, a escravatura ilegal,
a ambição do domínio que a história documenta levaram estes professores a
questionar-se sobre as bases jurídicas em que Portugal e Espanha estavam a
construir os seus impérios, sublinhando que o direito (natural e das gentes)
não parava nas fronteiras da Europa.
Tratando-se de clérigos católicos, tinham em mente a
afirmação de Cristo mandando os apóstolos pregarem a todas as nações, fazendo
ouvir a sua voz, mas sublinharam que se tratava apenas da voz de Cristo, e
tão-só para quem a quisesse ouvir. Ao dar à sua igreja o direito e o poder de
predicar em toda a terra, Cristo jamais dera o poder de obrigar a ouvir ou a
acreditar, pois esse poder não era de jurisdição ou julgamento, mas sim de
iluminação e persuasão, e tanto os efeitos como os meios deveriam ser
voluntários.
Negaram a autoridade universal do Papa, sublinhando que este
não tinha jurisdição sobre os povos não batizados, nomeadamente os gentios de
África e da América, porque São Paulo havia defendido não lhe competir julgar
os que "estão de fora". Não aceitaram a conveniência prática de
conquistar e escravizar primeiro para evangelizar depois, porque o mesmo S.
Paulo, o inventor do universalismo, havia ensinado que não cumpre fazer o mal
para que provenha o bem. Entenderam que a idolatria, que era uma ofensa a Deus,
não dava aos cristãos o direito de castigarem pela guerra quem a praticasse,
porque Deus não lhes concedera tal autoridade, pois a omnipotência divina não
necessitava de tais guerras. Rejeitaram, por falacioso, o argumento da prática
de "crimes contra a natureza" como justificação da guerra
(homossexualidade, poligamia, canibalismo pos mortem) porque nesse caso os
espanhóis e os portugueses poderiam castigar alguns desses crimes em França ou
em Itália, afogando a Europa e o mundo na insânia da guerra.
Em contrapartida, ergueram um princípio de proteção
internacional dos direitos da pessoa humana no caso dos sacrifícios humanos aos
ídolos na América, porque o desrespeito pela vida dos inocentes era, como
ensinou em Évora Fernando Pérez, uma "injúria ao género humano", quer
dizer, um crime contra a humanidade, reclamando o dever de intervenção
humanitária, dentro das regras da prudência, para que não fossem maiores os
danos. Por outras palavras, os direitos das pessoas e a sua proteção não
estavam circunscritos territorial ou politicamente. Estavam na esfera da
autoridade do orbe (a auctoritas totius orbis) e das normas do direito das
gentes, tal como emanavam dos ditames da consciência pública, consagrando
obrigações de cada um para com todos (erga omnes), não aceitando a tese da
autonomia da autoridade do Príncipe.
Combateram a tese aristotélica de que uma nação mais sábia podia submeter outra menos sábia, por ser princípio contrário à paz universal, e por em tal contexto qualquer um poder proclamar-se mais sábio que outro. Estenderam este princípio à negação da escravatura natural, porque os homens eram naturalmente iguais, mas admitiram a escravatura legal, na altura permitida pelo direito natural e das gentes, exigindo o rígido controlo das suas bases legais.
Aprofundando o âmbito das questões de diversidade religiosa,
entenderam que a ausência ou a recusa da fé não poderiam diminuir a liberdade
natural dos homens, bem como os seus direitos políticos, e escreveram lições
sublimes sobre a tolerância para com judeus e muçulmanos que hoje nos
surpreendem, ao serem contrastadas com a história dos reinos ibéricos onde
ensinaram.
Tendo em vista a experiência americana e africana,
sublinharam, portanto, que a fé e a política procediam de fontes distintas, a
primeira da lei divina sobrenatural e a segunda da lei natural e do direito das
gentes.
Ainda assim, entenderam que o Papa poderia nomear um
imperador cristão em terras ultramarinas, mas tão-só e apenas para proteção dos
voluntariamente batizados, pois sendo a Igreja uma república espiritual
cabia-lhe defender os seus fiéis súbditos, se necessário pelo braço temporal
dos príncipes cristãos.
Daqui partiram para a afirmação da legitimidade das
soberanias indígenas e para a fundamentação democrática da origem e natureza do
poder político. Em 1547, Martín de Azpilcueta ensinava em Coimbra, em texto
aqui publicado, que quando um povo não tinha a luz de um imperador era para si
a sua própria luz, que quando um povo não tivesse guia ou chefe seria o seu
próprio chefe e guia, e que se encontrássemos pelo mundo povos que parecessem
carecer de jurisdição, na verdade não careciam dela completamente, mas apenas
do seu uso. Ensinava-se que quando os homens criam a comunidade, nasce por
direito natural o poder da totalidade da República sobre os seus membros para
governo e administração. Ou seja, que o poder civil está inicial e naturalmente
no povo, que é constitutivo das comunidades humanas, que a democracia é a forma
mais natural e originária de governo, embora não necessariamente a mais
perfeita, e estendia-se este juízo ao mundo inteiro, afirmando que o poder
natural que tinham os homens para ditar leis civis era comum a gentios e
pagãos, razão por que o poder dos príncipes pagãos não era de menor nem de distinta
natureza do poder dos príncipes cristãos. Entenderam que os homens podiam
adotar a forma de governo que preferissem e não necessariamente a monarquia, e
que se optassem por conceder o poder a uma parte da comunidade, criando uma
aristocracia, ou a uma pessoa em particular, estabelecendo uma monarquia, tal
concessão deveria fazer-se através de um pacto ou contrato que estabelecesse
mútuas obrigações. Neste contexto, a comunidade poderia avocar e recuperar a
soberania em caso de incumprimento, consagrando o direito de resistência e a
morte dos tiranos.
Este princípio era extensível às Américas, a África e ao
Oriente. O império cristão não poderia ser constituído roubando e matando,
porque as leis imperiais não podiam contrariar as disposições naturais,
exigindo-se assim um pacto entre comunidades livres, sem ignorância, sem medo e
sem dolo. Caso contrário seria justa a guerra dos gentios contra os cristãos.
Considerava-se ainda que os cristãos poderiam ser súbditos de um príncipe
gentio. No fundo, como explicaria no final do século XVII o Padre António
Vieira, em matéria de soberania e liberdade valia tanto a coroa de penas como a
de ouro, e tanto o arco como o cetro. Assim, tanto se estabelecia um direito
universal de autodeterminação dos povos como o princípio da igualdade natural
das soberanias em todo o mundo, que hoje se consagra no artigo 2.º da carta da
ONU.
O mesmo sucedia com o direito de propriedade que se considerava ser universal desde os primeiros séculos da história humana, por ter resultado de um acordo virtual entre os homens para a ocupação das terras onde se encontrassem. A propriedade, individual ou comunitária, era um direito originário, permitido pelo direito natural e estabelecido pelo direito das gentes, estranho à religião. Nesse sentido era extensível a todos os povos da terra. Era um direito universal, como proclama hoje o artigo 21.º da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Daí o dever de restituição, que não estava na
dependência da vontade do Príncipe. Na pena, poderia dispensar o Príncipe, como
legislador, mas na restituição não, porque era indispensável, fazia parte de
uma jurisdição universal, superior à soberania do Príncipe, e assim se
consagrava a centralidade das vítimas, pondo acima da violação do direito a
reparação dos lesados, não apenas dos indivíduos, mas também das comunidades,
dando azo a reparações coletivas, que só muito recentemente encontraram
acolhimento nos tribunais internacionais, devido à força do viés individualista
da tradição liberal dos direitos humanos.
Estamos, pois, perante um legado relativamente desconhecido
da Cultura Portuguesa, atendendo à dificuldade inerente à leitura de
manuscritos latinos pejados de abreviaturas não catalogadas, que agora pela
primeira vez são publicados por uma equipa de investigadores da Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa (CFUL e CLEPUL) e da Universidade Católica
Portuguesa-Braga, com o apoio da FCT e da SCML.
*Pedro Calafate e Ricardo Ventura (dir.), A Escola Ibérica
da Paz nas Universidades de Coimbra e Évora nos Séculos XVI e XVII, Almedina,
Coimbra, 2015-2020, três volumes.
Professor universitário